A alma só acolhe o que lhe pertence; de certo modo, ela já sabe de antemão tudo aquilo por que vai passar. Os amantes não contam nada de novo uns aos outros, e para eles também não existe reconhecimento. De fato, o amante não reconhece no ser que ama nada a não ser que é transportado por ele, de modo indescritível, para um estado de dinamismo interior.
E então é impossível reconhecer uma pessoa ou uma coisa sem relação conosco próprios, pois o ato de tomar conhecimento toma das coisas qualquer coisa; mantêm a forma, mas parecem desfazer-se em cinzas por dentro, algo delas se evapora. É por isso também que não existe verdade para os amantes; seria um beco sem saída, um fim, a morte do pensamento que, enquanto estiver vivo, se assemelha à fímbria arfante de uma chama, onde se abraçam a luz e a escuridão.
Os amantes não se pertencem, mas têm de se dar em oferenda a tudo o que vem ao seu encontro e se oferece aos seus olhares entrelaçados.
A natureza e o singular espírito dos amantes olham-se nos olhos, e são as duas direções de um mesmo agir, um rio que corre em dois sentidos, um fogo que arde em dois extremos.
Robert Musil, in 'O Homem sem Qualidades'
´bendito o Senhor
que faz nova
todas as horas´